Ex-volante tetracampeão em 1994 elogia seleção de Tite e defende o esporte mais popular do país como um instrumento de transformação social
Habituado à discrição e ao serviço pesado de sua função, o volante Mauro Silva esteve perto de se tornar herói na Copa do Mundo de 1994. No segundo tempo da final contra a Itália, numa de suas raras investidas ao ataque, ele arriscou um chute de longa distância, o goleiro Pagliuca tentou agarrar, mas deixou escapar a bola que caprichosamente beijou a trave direita. “Torço até hoje para aquele chute entrar. Um dia vai acabar entrando, de tanto que eu torço”, brinca o ex-jogador, hoje com 50 anos e vice-presidente do departamento de integração com atletas da Federação Paulista de Futebol (FPF). O Brasil se tornaria tetracampeão mundial na decisão por pênaltis, o que, para Mauro Silva, afastou qualquer tipo de frustração que pudesse carregar pelo “quase gol”.
Afeito à disciplina coletiva que marcou a seleção de 94, ele elogia o sistema defensivo consolidado por Tite nesta Copa, vazado apenas uma vez – na estreia contra a Suíça. Agora dirigente, viajou à Rússia para participar de um simpósio da Conmebol que reuniu atletas e treinadores, em busca do aperfeiçoamento constante que prega no dia a dia. Também defende que o futebol seja utilizado como instrumento de transformação social através de ações conjuntas, em que a bola e a sociedade caminhem com a mesma sintonia de um relógio suíço. Ou da dupla Bebeto e Romário, consagrada há 24 anos sob a dedicada retaguarda de Mauro Silva.
Pergunta. O que julga fundamental para um time conquistar a Copa do Mundo?
Resposta. A solidez defensiva é muito importante. Sem isso, dificilmente uma seleção vence um campeonato de tiro curto como a Copa do Mundo. Numa tarde ruim, todo o trabalho pode ir por água abaixo. Em 94, sofremos apenas três gols. Outra coisa que foi determinante para conquistarmos o tetra é que deixamos os interesses pessoais de lado para colocar o interesse do time em primeiro lugar, sem vaidades. O Raí era o capitão, foi para o banco e, em nenhum momento, demonstrou comportamento que pudesse prejudicar o ambiente.
P. Romário diz ter sido o principal responsável pelo tetra. O sentido de equipe não ficou comprometido pelo individualismo da estrela do time?
R. Inegavelmente o Romário foi importantíssimo para aquela conquista. Mas e o Bebeto, que era uma estrela mundial e se dispôs a fazer um papel secundário em benefício do time? E o Taffarel, que fez uma grande Copa? Aldair e Márcio Santos, muito regulares? No fim, sobressaiu o trabalho em equipe que fizemos. Romário tem o jeitão dele, mas era um cara sensacional, engraçado e de ótimo convívio com o grupo. E o principal: resolvia lá na frente.
P. Como especialista da posição, entende que o Casemiro é o pilar desse alicerce?
R. O Casemiro é o melhor volante desta Copa. Ele desempenha um papel semelhante ao que eu desempenhava em 94. Muitas vezes, nem é notado em campo, não tem o desejo de ser protagonista, mas a função dele é essencial para fazer a equipe andar e proteger os zagueiros, além de dar liberdade para os laterais atacarem. Como no Real Madrid, ele transmite essa segurança ao time inteiro.
P. Ele está suspenso do jogo contra a Bélgica. O que muda na seleção com sua ausência?
R. O Fernandinho é um jogador mais versátil, de mais movimentação. Por não ser primeiro volante, ele tem a tendência de sair pro jogo. Mas é importante que se preocupe em guardar a posição, não só para evitar que o meio-campo [da Bélgica] bata de frente com os zagueiros, mas também para manter o padrão tático que o time desenvolveu com o Casemiro.
P. Quem joga nesta posição tem de preferir a discrição ao protagonismo?
R. Não é uma posição de protagonismo. Quando eu jogava no La Coruña, recuperava a bola e logo procurava o Djalminha, porque sabia que ele iria armar o time com muito mais qualidade do que eu. Se quisesse dar uma de Djalminha e o Djalminha quisesse dar uma de Bebeto, já complicava. Futebol é simples, cada um faz o seu. Saber reconhecer suas limitações e focar as ações em benefício da equipe é fundamental em qualquer competição, principalmente numa Copa do Mundo. Um time vencedor é como um relógio suíço: cada peça tem de cumprir seu papel com precisão.
P. Recentemente, você foi eleito o maior jogador da história do Deportivo e homenageado ao batizarem uma rua com seu nome em Corunha, na Espanha. Como um volante marcado pelo trabalho discreto alcançou tamanha idolatria?
R. Não sou querido no Deportivo La Coruña por causa do jogador Mauro Silva. Se fosse só pelo futebol, Bebeto, Djalminha e Rivaldo estariam bem à frente. Creio que gostam de mim pelo cidadão Mauro Silva, que se envolveu com o time e com o lugar, que incorporou os valores daquela comunidade. Ninguém fica 13 anos num clube se não tiver algo a oferecer além do campo.
P. Como foi sua transição de ex-jogador para dirigente?
R. Eu sempre soube que não queria ser técnico. É preciso gostar muito de futebol. Se você liga pro Pep Guardiola às 3h para falar de tática, ele vai adorar. O cara é apaixonado por isso. Eu também gosto, mas não a esse ponto. Já a parte de gestão sempre me seduziu. Busquei me qualificar para ter uma base de conhecimento. Quando meu pai morreu, eu tinha 12 anos. Minha mãe virou pra mim e disse: ‘Mauro, você só vai jogar futebol se estudar’. Isso me ajudou muito. Enquanto treinava no Guarani, também fazia informática no colégio técnico de Campinas. Não parei de estudar em meu período na Espanha, me especializei em finanças e gestão. Por isso, qualificação e educação são minhas bandeiras como dirigente.
“Ninguém fica 13 anos num clube se não tiver algo a oferecer além do campo”
P. A maioria dos jogadores acaba interrompendo os estudos durante o período de formação...
R. O futebol tem muito peso, vai muito além das disputas de sábado e domingo. Uma fala do Neymar repercute mais que uma do Temer. Tem muita gente que não gosta de economia, de política, de ciência, mas gosta de futebol. Por que não utilizá-lo como um instrumento de transformação social que seja capaz de tocar as pessoas, chamar a atenção para outros aspectos da vida? O Barcelona é um exemplo de como um clube incorpora causas fora do campo. O futebol serve para derrubar muros e construir pontes. Esse aspecto deveria ser mais bem explorado.
P. Depois dos escândalos de corrupção envolvendo dirigentes, você não hesitou em aceitar o convite de uma Federação ligada à CBF?
R. Nosso país está vivendo transformações profundas. Mas ainda acontece muito de as pessoas reclamarem de fora e não quererem participar da mudança, seja na política ou no futebol. A única possibilidade de mudar as coisas é com participação e envolvimento. Eu não quis me omitir quando recebi o convite da Federação. Se tem uma cadeira vazia, alguém vai sentar. Se não for uma pessoa do bem, vai ser outro qualquer. Precisamos ocupar os espaços. É claro que as entidades e os clubes não vão mudar da noite pro dia, mas tento fazer minha parte para contribuir com a modernização do futebol brasileiro.
P. E em que pé está essa dinâmica na Federação Paulista?
R. A Federação está se modernizando. Tem muita coisa pra gente corrigir e melhorar. Mas, em três anos, fizemos mudanças importantes. Antes, na categoria sub-11, por exemplo, um garoto jogava no mesmo gol onde jogava o Marcos e o Rogério Ceni. As traves, os campos e a estrutura dos campeonatos de base não tinham adaptação para a idade dos meninos. Já corrigimos isso. Ainda estamos muito distantes do ideal, mas, pelo menos, o processo de evolução já começou. O futebol brasileiro saiu da inércia. Todos os escândalos de corrupção, os problemas dos clubes e o 7 a 1 nos fizeram repensar as antigas práticas. Somos muito bons dentro do campo. Fora dele, há um caminho enorme a percorrer no que diz respeito à boa gestão, transparência e ética. Quero continuar participando dessa revolução.
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