Nova regulamentação da Lei Aldir Blanc para o Setor Cultural (Decreto 10.489/20)
A Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/20) acaba de ter mais um desdobramento na sua já longa história de normas e procedimentos para uma legislação que deveria servir de auxílio emergencial ao setor cultural em função da pandemia do covid-19. No dia 18/09/20, foi publicado o Decreto federal 10.489/20, que altera a regulamentação anterior (Decreto 10.464/202) e introduz três modificações na execução da LAB.
Duas dessas alterações são, a princípio, positivas. Em primeiro lugar, eliminou-se a obrigatoriedade de homologação, pelo Ministério do Turismo, de toda a base de dados de Estados, Distrito Federal e Municípios, para identificação dos profissionais e espaços culturais a serem beneficiados com a LAB. Agora, o próprio ente federativo deverá homologar as respectivas informações que utilizar, não mais dependendo de aprovação pelo Ministério quanto aos dados dos socorridos. Na verdade, em um país de dimensões continentais - com 26 Estados, um DF e 5.570 municípios - não era difícil prever que seria completamente ineficiente centralizar todo controle de dados em um único órgão federal. Assim, esse é um ponto de melhoria, que eliminou uma regra que era equivocada desde o começo.
Outra questão positiva foi a indicação expressa de que, nos casos de não entrega tempestiva dos planos de ação municipais ao Ministério do Turismo, todos os recursos não repassados a esses Municípios serão revertidos aos Fundos Estaduais de Cultura3. Até então, havia um receio de que boa parte dos Municípios não encaminhariam o seu plano de ação (que é condição para repasse dos recursos da LAB), inclusive por não se sentirem seguros quanto à forma de execução da verba, que ainda gera muitas dúvidas. Nesse caso, os recursos se perderiam, porque a legislação não indicava sua transferência aos Fundos Estaduais nesse caso. Agora, está claro que toda a verba prevista na LAB deve ser repassada e aplicada no setor cultural, mesmo no caso de Municípios que não apresentem seu plano de ação e não recebam os recursos.
Porém, essa mudança positiva implica em um grande alerta: vários Fundos Estaduais são estruturados hoje com regras muito burocráticas e engessadas. Inclusive, há Estados que sequer têm utilizado esse mecanismo em suas políticas culturais. Assim, é muito importante que os gestores estaduais da área cultural já se mobilizem, desde logo, para criar regras de flexibilização dos Fundos especialmente para seu uso com recursos da LAB no período excepcional da pandemia. Vale lembrar que isso demanda inclusive mudança na legislação e participação das Assembleias Legislativas, uma vez que os Fundos são usualmente criados por lei. Caso isso não seja feito, há um risco real de não ser possível executar plenamente os recursos que forem utilizados pelos Municípios e sejam repassados aos Estados.
Importante destacar que, além dos casos em que os planos municipais não sejam apresentados, os Fundos Estaduais também receberão as verbas que tenham sido efetivamente recebidas pelos Municípios e que não sejam objeto de destinação no prazo de 60 dias, contados do seu repasse pela União aos órgãos municipais. E que, nesse caso, os Estados terão apenas outros 60 dias para utilizar os recursos, o que é um prazo normalmente curto para cumprir todas as exigências burocráticas que usualmente são estabelecidas pela legislação aplicável aos entes públicos. Essa é mais uma razão para que os órgãos estaduais de cultura já se atentem para os ajustes necessários nos Fundos, visando a ampliação do seu alcance e simplificação das suas regras, de modo a executar plenamente o orçamento disponibilizado pela LAB.
Porém, apesar dessas duas alterações positivas trazidas pelo Decreto 10.489/20, há uma outra que tem potencial de gerar graves problemas, especialmente para os Municípios de menor porte. A nova regulamentação da LAB indica a obrigatoriedade de editais ou chamadas públicas para a execução de todas as ações previstas no artigo 2o, III da Lei Aldir Blanc4. Esse instrumento se refere às medidas destinadas à manutenção de agentes, espaços, iniciativas, cursos, produções, desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, produções audiovisuais, manifestações culturais e realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais. É um mecanismo complementar ao auxílio direto a profissionais e espaços culturais, previstos nos incisos I e II desse mesmo artigo.
No caso, o problema ocorre porque o Decreto desconsidera a possibilidade de haver situações nas quais seja literalmente impossível uma seleção entre profissionais, pelo simples fato de não existir em determinada localidade mais de um grupo dedicado a determinada forma de atuação cultural. Deve-se destacar que isso é particularmente comum em Municípios de pequeno porte, onde é usual existir apenas uma banda de música, um grupo de teatro, uma companhia de dança e daí por diante. Lembrando, logicamente, que isso sequer significa que todas as formas de manifestação cultural estejam contempladas em tais localidades.
Assim, há um problema em potencial na nova regulamentação, porque ela acaba impondo linearmente a necessidade de procedimentos seletivos, desconsiderando as particularidades locais. O mais adequado seria indicar que, onde houver mais de um possível contemplado para determinada área cultural, haja de fato um processo seletivo (que deve ser simplificado em termos de exigências e prazos, sob pena de não atingir seu objetivo de socorro emergencial). Porém, nas situações em que não se verifique essa pluralidade, não faz sentido impor cegamente a realização de editais, o que vai apenas atrasar o repasse dos valores, prejudicar quem deve ser atendido (e tem urgência no repasse) e ainda gerar custos para a Administração Pública local. Isso quando a medida não inviabilizar o próprio auxílio, dependendo do nível de exigências que a “seleção” demandar. Vale lembrar que, infelizmente, o Brasil é historicamente assombrado por uma cultura jurídica que se descola dos objetivos que as políticas públicas devem buscar, muitas vezes privilegiando controles burocráticos em detrimento dos resultados sociais que as ações deveriam alcançar.
É importante destacar também que essa imposição de editais em qualquer situação, desconsiderando situações de sua inviabilidade, é bastante questionável do ponto de vista jurídico. Em primeiro lugar, porque temos o Decreto 10.489/20 (que é norma hierarquicamente inferior) impedindo o uso de mecanismos de inexibilidade que são previstos e reconhecidos na Lei 8.666/93 (norma hierarquicamente superior a um Decreto). É princípio básico no Direito que essa hierarquia entre as normas não pode ser desrespeitada, de modo que um Decreto não pode contrariar disposições de uma Lei. Assim, essa disposição da nova regulamentação da LAB é de legalidade bastante questionável.
Além disso, há entendimento consolidado em julgamentos do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, em matéria de licitações e cultura, a competência legislativa exclusiva da União limita-se à edição de normas gerais, conforme artigos 22, XVII e 24, IX e §1o da Constituição da República de 1988. Porém, a análise se determinada localidade possui de fato (ou não) uma pluralidade de possíveis beneficiados pela LAB em cada campo cultural é uma questão específica, e não algo de caráter geral (até porque cada região tem características próprias). Assim, a União não pode impor aos demais entes federativos (especialmente os Municípios, neste caso) uma vedação de uso de regra de inexigibilidade prevista em lei, porque isso extrapola a competência constitucional cabível ao governo federal. A título de exemplo, podemos apontar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 927-3. Essa ADI foi julgada pelo STF e suspendeu a aplicação de parte do artigo 17 da Lei 8.666/93 no âmbito de Estados, Municípios e Distrito Federal, por faltar-lhe caráter geral. Temos situação semelhante agora, com essa regra questionável trazida pelo Decreto 10.489/20, que interfere especialmente na autonomia de gestão dos Municípios em relação à LAB.
Assim, é fundamental que a regulamentação da Lei Aldir Blanc seja urgentemente alterada para eliminar esse problema em relação à obrigatoriedade de processos seletivos nos casos de inviabilidade clara de pluralidade de beneficiários. E é sempre importante lembrar o impacto que a cultura promove do ponto de vista social e econômico, como já demonstrado inclusive pela Fundação Getúlio Vargas. A FGV mostrou que cada R$1,00 investido em um evento cultural pode gerar de retorno até R$13,00 em toda a cadeia econômica envolvida5. Além disso, é reconhecido que a cultura exerce papel importante na educação e formação cidadã da população6. Logo, a regulamentação da LAB precisa focar em criar soluções e não gerar mais problemas para um setor de extrema relevância econômica e social, que já se encontra duramente prejudicado pela pandemia.
1) Advogado. Doutor e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI. Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Pós-graduado em Direito de Empresa pelo CAD/Universidade Gama Filho – RJ. Palestrante e professor de Propriedade Intelectual, Direito Econômico e da Concorrência, Direito do Consumidor, Direito da Cultura e do Entretenimento e Terceiro Setor em cursos de pós-graduação, graduação, capacitação e extensão da Fundação Dom Cabral, do IBMEC, da PUC, da Escola Superior de Advocacia da OAB, da Faculdade CEDIN e da Faculdade Arnaldo. Contatos: www.dolabella.com.br e dolabella@dolabella.com.br
2) Já tivemos a oportunidade de analisar esse primeiro Decreto, por meio do artigo “A REGULAMENTAÇÃO DA LEI ALDIR BLANC PARA O SETOR CULTURAL (DECRETO 10.464/20): SOLUÇÃO OU PROBLEMA?”. O texto pode ser acessado em https://bit.ly/3kUEqM0.
3) Caso não exista o Fundo Estadual de Cultura, os valores devem ser repassados ao órgão ou à entidade estadual responsável pela gestão desses recursos. 4) Decreto 10.489/20 Art. 1o O Decreto no 10.464, de 17 de agosto de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 9º ..................................................................................................... ................................................................................................................... § 6º A execução das ações de que trata o caput ocorrerá por meio de procedimentos públicos de seleção, iniciados por editais ou chamadas públicas, observados os princípios da moralidade e da impessoalidade e vedada a aplicação da inexigibilidade de licitação de que trata o inciso III do caput do art. 25 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993.” (NR) 5) “FGV apresenta método para medir impacto econômico cultural”. Disponível em http://pnc.cultura.gov.br/2018/12/11/fgv-apresenta-metodo-para-medir-impacto-economico-cultural/
6) Falamos sobre o tema no artigo “CULTURA COMO ATIVIDADE DE EDUCAÇÃO PARA FINS DE IMUNIDADE TRIBUTÁRIA”, disponível em http://bit.ly/2OTRaE9.